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Longa vida aos filmes Alumbramento

A encruzilhada que surgia no percurso para Ythaca abriu várias fendas. Quanto mais se caminha pela estrada, mais caminhos de cinema são experimentados. São tornadas possíveis novas dinâmicas de relação, de invenção e de vida com o cinema. No lugar da oscilação entre duas vias, podemos falar de uma porosidade maior às bifurcações, às dobras e aos atravessamentos. A figura da encruzilhada é tomada por processos de diferenciação, porque cada ponto do caminho pode abrir-se para uma outra travessia e fazer surgir toda uma nova intensidade de forças. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

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A cada processo, um filme, e esse um é aqui fundamental, porque se torna signo de singularidade. Em muitos casos, podemos ver nos inícios das projeções a indicação: “um filme Alumbramento”. Essa apresentação pode variar e também surgir segundo outras disposições textuais. O nome pode vir direto e seco, sem intermediários linguísticos, anunciando o porvir: tela negra, “Alumbramento”. Pode também estar ao final, assinando aquilo que foi visto e encerrando a sucessão das imagens. Pode ainda vir seguido pela palavra “apresenta” (que tem surgido, cada vez mais, em companhia também de alguns parceiros de aventuras): é a Alumbramento que nos apresenta, então, aquela experiência que vai se desenrolar dali em diante na tela, como quem compartilha algo que quer mostrar para os amigos. Mas seria possível operar com aquela primeira formulação, a que enuncia “um filme Alumbramento”, para dizer não apenas da marca da produtora (aspecto fundamental, sem dúvida), mas, sobretudo, das implicações sensíveis para a própria experiência fundada a cada obra. Cada filme é um filme, e nada mais. Cada filme surge como uma singularidade. Mas é também um filme habitado por um mundo, por uma rede de conexões, por um espírito de desejos, de memórias e de processos coletivos, como se estivesse grávido de uma comunidade. Um filme Alumbramento poderia ser, então, o eterno retorno como diferença de uma infinidade de afetos e de uma multidão de encontros. A cada vez, sempre um, e a cada vez, sempre muitos.

Nesse jogo de singularização dos trabalhos dos filmes, a paisagem sensível é povoada por variações de figuras, que ao mesmo tempo ressoam entre si e apontam para trilhas bastante próprias. Ressoam porque as partilhas continuam sendo processadas, os encontros não cessam de existir, e cada um segue experimentando com o outro, segue no diálogo com o outro, na troca mútua de afinidades. Mas também fazem linhas desviarem, porque é a configuração maleável e aberta dessa reunião de forças para fazer cinema que não permite o estabelecimento de programas ou de visões dogmáticas quanto a um dever ser, quanto a um seguimento de possíveis já percorridos. É que cada trabalho pede para si as próprias condições de possibilidade. Não se trata de falar de evolução de linguagem, porque essa perspectiva não parece dar conta do que se passa aos processos de invenção. Uma tal noção evolutiva corre o risco de colocar em etapas muito compartimentadas toda a complexa aventura que é fabricar cinema. Se os filmes Alumbramento têm, no presente, certos desenhos sensíveis, isso se dá muito menos porque teriam passado por fases, dentro de uma suposta sucessão de estados formais, do que por uma constante inquietação produtiva, com idas e vindas de motivos melódicos nos processos de criação, com aberturas de diferentes frentes estéticas e políticas e com um caráter potente de proliferação. Se o cinema resiste, é preciso que ele resista primeiro a ele mesmo. Para que se faça com a capacidade de questionar os próprios percursos e quebrar qualquer linha contínua e segura. O cinema precisa correr perigo.

Nas variações tonais que passam a soar, seria possível esboçar um breve retrato dessa paisagem mais recente da produção da Alumbramento, colocando em relevo as figuras que as obras inventam. Poderiam ser considerados alguns conjuntos de passagens que vão de certa autonomia maior que se dá para as possibilidades dos encontros a um controle mais forte por parte da mise-en-scène. Se tomarmos filmes como Fim de Semana, de Ivo Lopes e Pedro Diógenes, e Odete, de Luiz Pretti, Clarissa Campolina e Ivo Lopes, podemos perceber dois campos de experimentação distintos que se abrem, desde já pelas próprias diferenças da natureza entre o trabalho documental do primeiro e a construção ficcional do segundo, mas principalmente pela motivação que faz acontecer cada um dos curtas, no contato deles com o mundo e com os materiais expressivos de que dispõem para se efetivar. As variações podem se dar também entre a construção dramatúrgica vinda dos arranjos de imagem/som e operações mais tomadas pela atenção à palavra e à enunciação. É notável como toda a narratividade que podemos atribuir a filmes como A Misteriosa Morte de Pérola, dirigido por Guto Parente, e Medo do Escuro, de Ivo Lopes, é fundamentalmente imagética e sonora, costurada pelos recursos dos enquadramentos visuais e sonoros. Já a linha apontada por O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti, estabelece um diálogo com uma dramaturgia em que o realizador passa a se colocar também no exercício de dirigir uma cena mais mediada pela palavra, pela enunciação e por um estilo de decupagem mais marcada.

Quadro e mistério

É na espessura da imagem e na densidade dos sons que alguns dos trabalhos articulam grande parte das atmosferas e da potência mesma de cinema. Guto Parente e Ticiana Augusto Lima fazem de A Misteriosa Morte de Pérola uma obra que pinta as sensações na superfície do quadro cinematográfico. Estamos aqui em um filme que coloca em curto-circuito as formas expressivas do cinema e da pintura: de um lado, é na passagem entre as imagens, nos ritmos e nas durações de cada plano que se desenrolam os climas; de outro, temos na unidade do quadro, nas camadas que ele cria, no campo que ele abre e na textura que ele tece os lugares por excelência das fulgurações e do povoamento fantasmático. A heterogeneidade de matérias fílmicas, possibilitada pelas transições para a modulação característica do vídeo caseiro, reverbera de forma sintomática nesse trabalho de associar texturas para compor o quadro.

O curto-circuito operado vai sendo progressivamente, também, entre um mundo de cá e um mundo de lá da imagem, entre lugares que podem criar vida e morte, ora recriando uma forma de vida, ora desencadeando a morte. Cineasta bom é cineasta morto. Se o cinema se contamina pelas formas pictóricas, é toda a casa que se transforma em um corpo vivo, repleto de respirações próprias, e capaz de ser um portal para outras forças e energias variadas – passagens misteriosas nesse universo de co-habitações e de interpenetrações. Essas figuras pictóricas de Pérola não deixam de reverberar o interesse presente também no colorismo e nas velocidades experimentadas em Dizem que os cães veem coisas, também de Guto Parente, e nos tons de Doce Amianto (dirigido por Guto em parceria com Uirá dos Reis), filme também permeado pelas experiências fulgurantes da imagem e pelos intercâmbios da fada Blanche, que vem de outros mundos para tecer relações com os viventes.

Os contatos com um cinema de gênero, na perspectiva de uma subversão, são também o motor em Medo do Escuro, já numa vizinhança maior com a ficção científica e segundo um caráter pós-apocalíptico. Uma cidade desabitada e em ruínas é o que parece desencadear as assombrações e os mistérios aqui. Já não tanto com o rigor formal do quadro fixo, como em Pérola, mas com um interesse semelhante pela plasticidade e pela superfície pictórica da imagem, a câmera vai passeando ao ritmo do corpo do personagem central. Também se trata de um trabalho de texturas e de intensidades pictóricas, criadas pelas escalas de cores, de brilhos e de vibrações do material fílmico, mas agora a paisagem que se abre é diversa, e a construção do quadro se processa de forma mais delirante. É um filme que pinta a devastação de um mundo, para o qual só se pode responder com a energia vital do movimento do corpo errante, observado na sua ritualidade performática. Esse ritual pega delírio especialmente na dança final, em que música, corpo, luz e câmera colocam-se em jogo de imprevisibilidades, numa sequência que faz lembrar a intensidade atingida também na cena final de Os Monstros (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti), quando a performance musical dos quatro atores e diretores era acompanhada pelo movimento de uma câmera-corpo gestual e igualmente performática.

Filmes selvagens

O empreendimento de estudo das texturas e das formas é carregado de toda uma tonalidade política. Essa preocupação não é inédita nas estradas dos realizadores da Alumbramento, especialmente se entendermos como políticos pequenos deslocamentos no olhar, micro-acontecimentos que podem desconcertar uma estruturação da sensibilidade, como quando Guto Parente observava o lugar adquirido pela imagem como mediadora da experiência, em Flash Happy Society, filme de operações muito sutis, de uma absoluta simplicidade, e ao mesmo tempo de uma radical contundência no gesto de provocar crises dentro do jogo extremo de visibilidades da sociedade contemporânea. Essas tensões são tomadas por um interesse em fazer da própria forma fílmica um operador ativo de desestabilização e de ranhura nas constituições aparentemente dadas do mundo. Fazer filmes selvagens. Toda uma prática composicional que dialoga fortemente com a estética do vídeo é posta em ação para desencadear descompassos com uma maneira organizada de gerir a vida, os corpos e as imagens. É o Filme Selvagem, de Pedro Diógenes, uma expressão emblemática dessa toada de assumido manifesto, que instaura embates com as formas de governança dos sentidos. E a tessitura crítica passa pelo campo das formas que fazem fissura em outras formas, desgoverno que desvia de uma organização modelizante.

São táticas de resistência que passam a ser experimentadas como táticas de cinema. Em Com os punhos cerrados, de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, ouvimos a leitura do fragmento “Como fazer TNT”, extraído do “Livro de receitas do anarquista”, enquanto as imagens apresentam imensos blocos de concreto, prédios emblemáticos que dizem muito das estratégias dos poderes em esquadrinhar o espaço urbano. Os ruídos nas texturas da imagem e do som deslocam todo um modo de perceber esses lugares pobres de experiência. E então o cinema, nas suas táticas de montagem e de encenação, encontra uma forma tanto de tornar dizível uma insatisfação quanto de tornar fazível uma imagem insurgente, tão incendiária quanto TNT. Explosões de cinema que podem ser vistas também em Não estamos sonhando, de Luiz Pretti, que aponta um cinema projétil para a cidade, quando o gravador de som vira detonador da fabulação que abala estruturas, desfaz coordenadas e leva virtualmente um mundo de concreto ao lugar de ruínas. Essas roturas sensíveis se dão no limiar do cinema com um fora, o que fica ainda mais evidente em O Porto (Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Clarissa Campolina e Julia de Simone), que carrega para a escritura uma conexão urgente com o presente e com os processos de ordenação do espaço urbano.

A ficção que nos pertence

Esse desejo de intervenção política é ainda inseparável da potência constituinte vinda da dramaturgia dos filmes. E um dos lugares de destaque para essa invenção de mundos é a ficção. Haveria toda uma política da ficção, que consiste em possibilitar a fabricação, no sentido mais concreto que essa palavra pode ter. Uma resistência passa menos pela lógica da oposição e da postura reativa que de uma capacidade de insistir numa produção de mundos. Fabricar tem a ver com uma maneira de articular elementos para fazer irromper um timbre inédito, uma vibração ainda não sentida, uma voz que não era ouvida, um corpo que não tinha espaço. Quando A Misteriosa Morte de Pérola e Medo do Escuro tomam para si toda uma matriz de cinema de gênero, trata-se também aí de dar novos usos à linguagem e fazer com que ela desvie de um caminho estabelecido previamente. O esforço fundamental está no jogo de desapropriar um modo de fazer. Cabe transformar primeiro em impropriedade um certo campo de referências, que como tal, já não pode pertencer a um ou outro, mas precisa tornar-se comum. O gesto seguinte é inventar o próprio possível, a partir desse território que foi desapropriado e se tornou terra partilhável por todos. Eis uma política ficcional bastante intensa nos filmes da Operação Sonia Silk, projeto que inclui O Rio nos Pertence, O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi e O Fim de uma Era, de Ricardo Pretti e Bruno Safadi: ativando toda uma operação narrativa mais marcada, eles tomam algo como que uma supermemória do cinema para contar histórias que não cessam de colocar os filmes em crise com um estado do mundo.

Se O Fim de uma Era faz a ficção da ficção, a imagem dentro da imagem, compondo rostos e vozes, a partir da própria aventura de fazer cinema dentro do processo de realização desses três filmes, o trabalho de construção de personagens vai surgir com maior marcação em O Rio nos Pertence, com dramaturgia bastante singular dentro dos outros trabalhos que Ricardo já realizou dentro dos próprios trajetos Alumbramento. Já não se trata tanto dos recursos expressivos de filmes como Estrada para Ythaca, Os Monstros e Com os punhos cerrados. Seria possível mesmo reaproximá-lo de Medo do Escuro e também de A Misteriosa Morte de Pérola, se pensarmos em todo o temor que ronda misteriosamente os personagens dos três filmes, como se houvesse sempre um mundo que bate à porta, ameaçador e prestes a tudo engolir. Aqui é a cidade inteira que assombra, e todo o jogo de encenação, de dramaturgia e de decupagem vai sustentar um sentimento de desconexão com o espaço. Ir e vir, sair e entrar: todas as passagens operadas pelo corpo da personagem vão se materializar também no controle dos trânsitos do cinema. Talvez se trate de constituir a sensação de uma cidade da qual seria preciso se despedir, uma cidade desterro.

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Alumbramiento, um filme de Victor Erice. Uma vez o Pedro Diógenes me contou que esse curta de dez minutos era uma grande inspiração para o coletivo Alumbramento. Um filme que pode ser visto em suas várias implicações, mas que me parece dizer muito do tempo, da possibilidade de uma simultaneidade de acontecimentos na espessura de uma duração. Existe uma série de ações coexistindo ao longo do filme. Enquanto um bebê recém-nascido tem um sangramento que demora a ser percebido, a mãe dorme um sono inquieto. Em outro canto, um garoto desenha no pulso um relógio, ele cria a sua ficção do tempo. Um pouco mais longe, uma mulher estende roupas no varal. Dizendo muito rapidamente, é mais ou menos assim que segue o curta, com essa variação de frentes abertas, até uma posterior confluência. É que uma vida e um filme podem condensar toda uma heterogeneidade de percursos. As figuras do cinema têm também a ver com as figuras temporais da vida. E o tempo é também marca de redes e de aberturas, de bifurcações e de fendas. Um filme Alumbramento poderia ser pensado segundo essa figura da multiplicidade: comunidade de tempos, de afetos e de espaços. Não mais escolher entre dois caminhos: fabricar caminhos. Texto publicado originalmente na versão impressa da programação da Mostra Alumbramento, ocorrida em dezembro de 2014.

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