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Adèle, uma vida...

Azul é a cor mais quente (2013), de Abdellatif Kechiche



Tornar palpável o que a imagem faz visível. O rosto de Adèle é morada da vida dela. Ele reúne todo um conjunto de linhas, de forças, de intensidades. O rosto é isolado no plano bem próximo, fechado, recortando uma sensação. Explorações de Kechiche em torno de uma forma fílmica que dê conta da pele, o close como uma forma a ser pesquisada... A câmera enquadra com intimidade as superfícies. Azul é uma textura, é uma melodia, é uma percepção de desejo. Azul é a cor mais quente é um filme de pele, de boca, de sovaco, de poros, de catarro escorrendo.


Tudo se passa como se fosse preciso investigar as potências de uma imagem em tocar o corpo. Porque no contágio e na contaminação, a obra vai então jogar-se na vida. Tornar vivível e experimentável, desafio do cinema. E no campo da ficção, é possível forjar mundos de experimentação de vidas. O primeiro momento em que Adèle e Emma se beijam vem numa sequência em que as duas conversam sobre texturas. Há uma espera, que já tinha acontecido em cena anterior, mas que agora se converte no toque dos lábios.



Pensar uma ficção constituinte de corporeidades e sensualidades. Emma é pintora, e isso aqui parece ser bastante decisivo. Porque cabe também ao filme investir em maneiras de traçar figuras na tela, em imprimir na imagem gestos de amor e de dor. Cabe a Kechiche, então, escolher como a luz vai incidir numa mão, num olhar, e como ela vai constituir uma plasticidade que faça mesmo do ato de comer macarrão um momento de sentir como uma boca fica coberta por uma cor.


É a vida toda que vem incendiar o filme de Kechiche. A vida que ele produz, a vida que ele retorna para nossas vidas. Como quando se diz, fazer sentir na própria pele. Lembro uma discussão que faz o Didi-Huberman em torno da maneira de as imagens tocarem o real e se constituírem na tensão com o mundo. Ele toma outras obras, mas a experiência sensível inventada pelas vidas de Adèle e Emma parece falar muito também daquilo que Didi-Huberman chama de uma ardência das imagens. Porque a imagem arde, ele diz. “Como se costuma dizer ‘ardo de amor por você’”. E aqui a cor, mais ainda, ela arde. E também ardem os movimentos dos corpos, o toque das mãos, os cabelos, cada parte que é extraída do todo como um gesto tornado imagem. “Arde pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe”.


O cinema pode, então, causar dor, porque a tela é uma superfície de contato com o mundo. E a pele de Adèle é o ponto onde filme e vida se tocam. É quente, porque sentir a pele é uma ardência. As cores ganham corpo. É quando o visível e o tátil se contaminam no cinema, para carregar também o corpo e a vida do espectador.


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